Já devia este desafio à Daniela há imenso tempo. Faltou-me tempo e inspiração. Não sabia muito bem como apresentar a resposta a este desafio.
Inicialmente pensei em dar apenas as indicações para a construção de uma cena, mas estava-me a saber a pouco. Queria sair da zona de conforto e arriscar.
Depois de muito matutar no assunto, arrisquei. Espero que o risco venha associado a um bom produtor.
Espero que gostem de ler a minha cena, mas acima de tudo espero ter correspondido às expetativas da Daniela.
As personagens principais deste romance – Miles e Tate – conheceram-se de uma forma um pouco atribulada e caricata.
Se a autora precisasse de uma ideia igualmente atribulada e divertida para duas personagens se conhecerem, o que lhe sugeririas?
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Ela
Era o dia da minha estrei num espetáculo a solo enquanto cantora lírica. Olhava-me ao espelho enquanto fazia aquecimentos vocais e revia o alinhamento do espetáculo. Iria começar com o “Oh Mio Babbino Caro” e terminaria com “Va’Pensiero”.
Os nervos começavam a ocupar todos os meus músculos. Tentei rodar os ombros e o pescoço numa tentativa vã de me libertar deste nervosismo.
- Está na hora.
Olhei para a porta e vi a minha manager de sorriso aberto para mim. Assenti. Respirei fundo. Sai do camarim, percorri o pequeno corredor e subi as escadas com a velocidade que os meus saltos altos me permitiam.
Não quis espreitar a plateia, mas pelo número de bilhetes que haviam sido vendidos sabia que a sala estarei cheia.
Fechei os olhos e preparei-me para absorver aquela que, de certeza, iria ser a melhor noite da minha carreira.
Ele
Adoro canto lírico. É um amor tão grande que me leva a fazer quilómetros para assistir a um bom espetáculo. Hoje não precisei de me fazer à estrada. Tinha um espetáculo mesmo à porta de casa. Só precisava de atrasar a rua.
Analisando bem as motivações para hoje estar aqui sentado nesta sala tão bonita e repleta de pessoas não foi só a minha paixão pela música.
Na semana passada, quando regressava do trabalho, esbarrei com o cartaz que anuncia a estreia de uma nova cantora lírica. Uma filha da terra, com uns olhos castanhos hipnóticos. Fiquei a olhar para o cartaz por um período de tempo que me pareceu exagerado. Consultei o meu horário de trabalho para a semana seguinte para decidir qual o melhor dia. E não podia ter sido melhor, conseguia vir no dia da estreia. Entrei e dirigi-me à bilheteira.
- Por favor, quero um bilhete para o próximo domingo. Ainda é possível?
A funcionária sorriu e disse:
- Restam dois bilhetes. Parece-me que está com sorte! É um homem de sorte?
- Tem dias – disse-lhe eu com um encolher de ombros.
Foi aquele golpe de sorte que me trouxe aqui hoje. E talvez aqueles olhos. E talvez aquela postura muito rígida tão características das cantoras líricas. Ou talvez tenha sido um conjunto de fatores que se conjugaram para que eu vestisse o meu fato, colocasse o meu aftershave e hoje me sentasse aqui para ouvi-la.
A luz baixou na plateia e intensificou-se no palco. A orquestra começou a tocar e ela entrou.
Ela
Entrei no palco e olhei para a plateia. Era uma massa de escuridão. Melhor assim. Os meus nervos não me estavam a deixar ver com exatidão quem tinha vindo hoje assistir à minha estreia.
O matraquear dos meus saltos no palco foi abafo pelos acordes introdutórios da música que iria dar início ao recital.
Posicionei-me no meu lugar e comecei a cantar.
Uma música sucedeu outra e outra. Começava a ficar cada vez mais consumida com os nervos e as inseguranças começaram a invadir-se a mente como ervas daninhas nos jardins.
Pensei que o nervosismo fosse diminuindo à medida que ia cantando, mas não, piorou.
Fui-me aguentando, com a consciência de que a minha voz não estava no seu melhor. Estava a força-la demasiado. Sabia disso, mas tinha de me aguentar.
A orquestra começou a introdução da última música. Fechei os olhos. Estava quase, mais uma música e poderia descansar.
Comecei a cantar e voz tremeu mais do que devia. Ao segundo verso a voz falhou e eu entrei em pânico. Tentei forçar a voz, mas nada saia. O coração começou a bater demasiado depressa. Os meus olhos duplicaram de tamanho. Uma agitação crescia dentro de mim e dificultava a minha respiração. De repente tudo ficou negro dentro de mim e perdi os sentidos.
Ele
Apesar de sentir o nervosismo dela nos versos que ia cantando eu conseguia ver o valor que ali estava. Um diamante do canto lírico. Cheia de emoção na voz e com uma entrega especial.
Fechei os olhos e recostei a cabeça na cadeira. Queria filtrar o que de melhor estava a ser apresentado naquele palco. De vez em quando abria os olhos para absorver as expressões faciais e toda a linguagem corporal dela. Ela amava estar ali em cima, mas algo a retraía e não a deixava brilhar na sua máxima intensidade.
O recital encaminhava-se para o fim e eu já só pensava numa forma de ir aos camarins e conhecer esta mulher. Até que aquilo que não deveria acontecer, aconteceu. A voz começou a falhar-lhe.
Abri imediatamente os olhos e inclinei-me para a frente. Se mais depressa abandonava o meu estado de puro relaxamento, mais depressa a via estatelar-se no palco.
O instinto de médico das urgências falou mais alto. Pulei da cadeira. Atropelei os pés delicados de senhoras e os sapatos envernizados dos que estavam na mesma fila e corri em direção ao palco.
Os seguranças foram mais rápidos do que eu e formaram logo uma barreira impedindo-me de aceder às escadas que me levariam à mulher que estava no palco rodeada de elementos da orquestra que se tinham levantado.
- O senhor não pode passar – Os seguranças gritaram para se imporem e para se fazerem ouvir perante o burburinho ruidoso que se formou naquele espaço.
Enquanto esbracejava para me tentar libertar deles gritei:
- Eu sou médico, porra! Deixem-me ajudar.
Em segundos eles compreenderam a minha missiva e deixaram-me passar.
Voei pelas escadas até ao palco.
- Afastassem! – gritei – Ela precisa de espaço.
Agachei-me ao pé dela e verifiquei os sinais vitais. Estavam lá todos. Provavelmente os nervos levaram a melhor e quebram o encanto da sua noite, mas não lhe quebraram o encanto da sua beleza. Como seria bom voltar a ouvir aquela voz e conhecer a mulher por detrás dela.