Visões #3 | Doar o corpo à ciência
Falar dos nossos interesses e vontades para depois da nossa morte não é um tema muito consensual, nem muito bem aceite no seio da família. Por isso, só muito recentemente (e muitas vezes em jeito de brincadeira) digo que não quero ir para nenhum cemitério e servir de alimento aos bichos, também não quero ser cremada. Aquilo que que eu quero é que o meu corpo seja doado à ciência.
A verbalização desta minha vontade já deu aso a múltiplos comentários e nenhum deles foi favorável. Aquilo que oiço mais vezes é "és doida", "não sabes o que estás a dizer", "meu Deus e ficas sem funeral". Reconheço que viver no interior do país e com mentalidades um pouco paradas no tempo não abone a favor destas "modernices" da ciência e da investigação científica.
Considero-me uma mulher da ciência. Tenho um respeito enorme por aqueles que dedicam o seu tempo a estudar e investigar novas formas de melhorar a nossa qualidade de vida. E apesar de existirem inúmero recursos para o estudo da anatomia nada substitui a realidade e a possibilidade de se estudar em cadáveres humanos.
Até que ponto o nosso corpo pode ser um meio de chegar a novos conhecimentos? Até que ponto o nosso corpo será motivo de descobertas científicas capazes de ajudar outras pessoas?
Não gosto de funerais nem dos rituais associados aos mesmos. Reconheço a sua importância para o processo de luto pessoal, mas para mim são verdadeiros momentos de agonia e de desespero. Assim que comecei a ouvir falar sobre as doações de cadáveres, tenho procurado ler mais sobre o tema e tentar perceber como se processam as coisas e quais as mais valias para a ciência deste ato pessoal.
À medida que vou lendo vou somando certezas e eliminando algumas reservas e dúvidas. Tenho lido vários artigos, opiniões, visões sobre o tema. Quero conhecer tudo o que me seja possível, quero saber como funcionam todos os processos e adoraria visitar os serviços que estão relacionados com a doação de corpos. Quero perceber melhor qual o impacto destas doações nos serviços e nos futuros profissionais de saúde. No fundo, quero ter o máximo de informação para que a minha decisão seja esclarecida.
É claro que nada é assim tão simples e apesar de ir somando as tais certezas relativamente a uma possível doação, não posso esquecer qual o impacto desta minha decisão na minha família atual e numa possível família futura. Sei que para muitas pessoas é importante ter uma campa no cemitério para visitar. Sei que para outras tantas pessoas todos os rituais associados aos funerais são importantes para resolverem interiormente o sentimento de perda. Estes pensamentos sobre os outros e as suas reações acabam por abalar um pouco as minhas certezas. Não quero ser um peso, ou uma tristeza adicional para aqueles que cá ficam. Não quero que as minhas escolhas sejam associadas a algum tipo de egoísmo.
Para mim a doação faz todo o sentido. Talvez só precise que as pessoas à minha volta compreendam e aceitem as minhas decisões. Quero acreditar que ainda me falam muitos dias pela frente, dias onde poderei ler mais sobre o assunto, conhecer melhor os locais que aceitam estas doações, viver muito e intensamente e, assim, tomar uma decisão o mais conscientemente possível.
Gosto muito de saber o que as outras pessoas acham acerca do tema. Por isso, abro aqui a discussão: o que é que acham da doação de corpos para fins de investigação? Seria uma decisão confortável ou desconfortável para vocês?
Adoraria perceber o que pensam.